domingo, julho 31, 2016

Boris at the Foreign Office


Uma das situações mais bizarras das últimas semanas, que permitiu um mínimo de discussão mas que acabou submergido na torrente de acontecimentos simultâneos, foi a nomeação de Boris Johnson para Secretário de Estado dos Assuntos Estrangeiros. Ele, que quase se guindou à liderança dos conservadores - e do governo da Rainha - com as portas escancaradas, na sequência do referendo do Brexit, tinha fugido da luta, aparentemente destruindo a sua carreira política quando estava tão perto do topo, dando uma imagem de fuga às responsabilidades e desiludindo quem nele tinha apostado. Esta promoção não deixa de ser surpreendente, porque é dos mais inesperados e rápidas regressos à ribalta depois de uma travessia no deserto, também ela das mais rápidas. O ex-editor da Spectator ocupa um cargo que lhe dá ainda mais visibilidade do que o de mayor de Londres. Terá oportunidade de fazer valer as suas reais capacidades executivas, e já agora, a sua bagagem da História e a sua percepção dos acontecimentos. O seu maior problema é a irreverência - paradoxalmente também a causa da sua grande popularidade - que lhe deixou um rasto de declarações muito pouco diplomáticas sobre variados estadistas ou candidatos, como Hillary Clinton, Donald Trump, e sobretudo, Erdogan. Os encontros bilaterais com qualquer desses parceiros serão previsivelmente tensos, e talvez por isso o seu ministério tenha ficado despojado da questão do Brexit, entregue a outro órgão criado de propósito.

Apesar de conhecida a propensão de Johnson para a irreverência (ou para o puro disparate), algumas das reacções à sua nomeação revelaram bem o grau de arrogância e de ressabiamento com que alguns responsáveis da UE lidaram com o referendo britânico, a começar pelos responsáveis da política externa dos dois países que julgam dever ser eles a controlar a UE, a França e a Alemanha. Ayrault disse tratar-se de "um mentiroso", o medíocre Steinmeier afirmou que a nomeação era "escandalosa". Música para os defensores do Brexit, que ganham mais pretextos contra a intromissão em assuntos exclusivamente reservados ao Reino Unido, neste caso a escolha dos membros do governo. E vindo da França e da Alemanha, ainda mais desconfiança provocam no lado de lá da Mancha. Sim, o Brexit também é por culpa de gente desta. Repito: foram reacções à sua nomeação de uma pessoa com quem forçosamente se terão de encontrar, não meras críticas antes de se saber que ia ser nomeado, o que diz bem da qualidade de alguma euroburocracia reinante. E não, não eram do tão criticado PPE, antes dois socialistas, como aliás o é Dijsselbloem. Estou curioso para ver os primeiros encontros de Boris com esta gente.

Entretanto, a Grécia tem voltado ao ataque para que os frisos do Pártenon que Lord Elgin levou para o Museu Britânico há duzentos anos sejam devolvidos à proveniência. É um pedido justo, que teve o apoio recente do Parlamento Europeu. Será mais um pretexto para o Brexit. Boris tem sido um fervoroso defensor da manutenção dos mármores em Londres, e as pressões europeias podem tê-lo ajudado a optar definitivamente pela saída da UE. Certo é que o pedido dos gregos é antigo e que o próprio Boris sabe-o bem, já que na sua juventude em Oxford teve de encarar a máxima defensora do regresso dos frisos, a mítica Melina Mercouri. como se sabe,  não se deixou convencer, mas pela expressão não deixou de se sentir intimidado pelos argumentos da combativa ministra grega da cultura.
 

quarta-feira, julho 27, 2016

Um mártir




...porque o é, realmente. Porque morreu a cumprir as obrigações para com Deus e a comunidade e honrar os seus votos. Coincidência pouco alegre: o seu martírio ocorreu ao lado da mesma cidade, Rouen, onde morreu outra mártir e a padroeira de França, Joana D ´Arc. E como já notaram, na Igreja de Saint Etienne (Estêvão), o primeiro mártir cristão.
Aquilo que ouvíamos acontecer na Síria e no Iraque acontece agora na Europa. Temíamos que pudesse suceder, mas no fundo com esperança que não, que ficasse lá longe, aquém Mediterrâneo. O Padre Jacques Hamel é afinal um mártir da Igreja tal como são muitos outros que morreram nos últimos anos às mãos de uma horda que não respeita religiões, idades ou qualquer outra condição.
 
Falava no último post de alguns apressados, de autores de frases banais. Nas redes sociais de hoje, voltam a aparecer. Mas até por respeito para com Jacques Hamel, podia-se evitar lançar tiros para todo o lado, sobretudo para os refugiados, como já vi muitos fazer, como se já soubessem de quem se tratou e precisassem de um culpado à mão, como acontecia no velho Oeste.
 
Mas entretanto aparecem mais grupos particularmente irritantes. Os que vêm com pacifismos patéticos ou oportunistas, afirmando que "a culpa é do racismo e da austeridade", como o fazem alguns idiotas úteis. Ou pior, os que por ser um padre, lançam piadinhas ou até encolhem os ombros porque, segundo eles, "também houve as cruzadas e a Inquisição". Pois, e também houve a cultura ocidental de mil e quinhentos anos, também houve o espírito de acolhimento e de caridade, também houve o fim dos jogos de circo e a escravatura (que infelizmente voltou), também houve a capela Sistina, a regra de S. Bento e as missões a acolher os pobres deste mundo. A esses, perdoemos, e se voltarem a insistir, talvez um balde de água fria pela cabeça abaixo seguido de uma sabatina de estudos sobre a matéria lhes faça bem. O Mal paga-se com o Bem, sabemo-lo desde aquela última Ceia.

segunda-feira, julho 25, 2016

Frases ocas, perigos imprevisíveis e a ferida de Nice

Fico sempre de pé atrás quando, mal surge a notícia de mais um atentado terrorista, aparecem logo as vozes a dizer que "é preciso tomar medidas drásticas", que "o Ocidente está de novo sob ataque" ou que "a Europa não percebeu que está em guerra" conjugado com um "o Daesh continua a crescer no Iraque a na Síria". Ouvi estas quatro frases depois dos atentados de Nice, e retive-as porque são uma súmula das declarações-tipo de rede social feita à pressa, com uma qualquer pretensão a que os outros as ouçam comko expressões de altíssima sabedoria.
 

Não sei de que medidas drásticas se fala; geralmente, os autores da frase nunca dão exemplos, mas calculo que seja a expulsão de toda a população com origem étnica de uma maioria muçulmana, ou a proibição da prática do Islão, nas opiniões mais radicais, ou a expulsão de clérigos. Mas em casos em que não se percebe bem a motivação, de que serviria (além de que a expulsão de populações inteiras nunca traz grande resultados)?
 
O ocidente está de novo sob ataque". Sim, é verdade. O terrorismo não poupa a Europa e um pouco os Estados Unidos e a Austrália. Mas que dirão os iraquianos, sírios, afegãos, turcos, indianos, bengalis, inúmeros países africanos, etc, que apanham com o grosso dos ataques e que são as primeiras vítimas do propalado Daesh? O eurocentrismo de muitos continua a não perceber que a Europa já não é o centro do Mundo.
 
 
"A Europa não percebeu que está em guerra". Percebeu sim. Aliás, aquando dos atentados de Novembro em Paris, François Hollande usou imediatamente essa frase desde então, e com ele, muitos outros. Sim, a Europa e não só está numa guerra atípica e fora das habituais normas do direito internacional contra uma organização terrorista e maléfica que tem base territorial e serve de inspiração a uma quantidade não desprezível de assassinos escondidos. Mas que é que isso implica? Que as pessoas se fechem em casa, andem mais ou menos armadas, cavem bunkers? Ou tentem fazer a sua vida da forma mais natural possível? E se os autores dessa frase dessem o exemplo e se dessem como voluntários para combater o Daesh no Médio Oriente? Por outro lado, dizer que o Daesh continua em grande na Síria e no Iraque prova que não têm estudado os mapas de guerra nos últimos tempos. Fallujah, Palmira, Sinjar, tudo nomes que não lhes dizem nada.
 
Frases ocas à parte, a verdade é que nos últimos tempos nos temos confrontado com uma data de actos trágicos que só variam no grau (que pode ir até às centenas de mortes de uma penada, como há dias em Bagdad), quase todos com a marca do Daesh. Pior: das células terroristas conectadas com a organização-mãe passou-se os lobos solitários muitíssimo difíceis de detectar, que se declaram soldados do Daesh", ou que se não o fazem, imediatamente vem a organização declará-lo como tal (caso de Nice). E agora temos todos os alienados e sociopatas que, inspirados pelos atentados do dia anterior, tentam fazer algo de semelhante, como tem acontecido na Alemanha nos últimos dias. E mesmo não sendo adeptos do Daesh, como o atirador de Munique, a psicose instalada leva a que se fale logo em terrorismo islâmico. Pergunto-me até que ponto as notícias em barda e os directos intermináveis não potenciam ainda mais ataques, de forma similar à que as imagens de incêndios provocam aos pirómanos.
 
Os tempos que se avizinham vão ser muito complicados. Não sei se se instalará a paranoia ou a banalização. Qualquer uma delas é perigosa.
 
Uma coisa é certa: não voltaremos a ver a bela Promenade des Anglais, observada do châteaux de Nice, bordejada pela Baie des Anges, pelo Negresco e pelos casinos e palácios de verão, com a mesma disposição. Nice, emblema maior da Côte d´Azur e do savoir-vivre daquela região, é a ferida mais pungente em todo este Verão perigoso. E vai demorar a passar.

Nice 2005, numa foto de fraca qualidade mas muito pessoal

sexta-feira, julho 22, 2016

Uma tirania com forma democrática?


Apesar de todos os boatos, custa-me a crer que o putsch na Turquia tenha partido do próprio Erdogan. Se assim fosse, não haveria tantos soldados mortos (só na improvável hipótese de serem todos mártires), além de que golpes protagonizados pelas forças armadas naquele país são relativamente vulgares. A diferença é que desde há muito que as purgas nas cúpulas das forças armadas tinham permitido "limpá-las" dos que se consideravam "guardiões do estado laico", pelo que os postos superiores eram de homens fieis a Erdogan. Assim, foram entidades intermédias ou menos graduadas as responsáveis pelo golpe abortado.
 
Não vale a pena estar a reportar e a debater todos os acontecimentos da tentativa de golpe. Como já disse, com os poucos elementos disponíveis, não acredito na teoria de auto-golpe como pretexto de reforço de poderes. Mas é razoável pensar que Erdogan estivesse a par de planos para uma tentativa e o utilizasse para aumentar posteriormente o controlo do país, como efectivamente acontece. O apelo à população surtiu efeito: perante milhares de civis que apoiavam o presidente, e tendo em conta a sua legitimidade democrática, todos os partidos da oposição e grande parte das potências internacionais apressaram-se a condenar o golpe, o que reforçou a sua posição. Para mais, os revoltosos cometeram erros incomensuráveis, disparando sobre populares, o parlamento e o palácio presidencial, desencadeando ondas de violência e a sua própria derrota. E as memórias de outros golpes (particularmente o de 1960, que acabou com o derrube e morte de um primeiro-ministro eleito) não ajudaram.
 
Com a purga de militares, funcionários públicos, académicos e magistrados em curso (fala-se de mais de 50 mil pessoas afastadas), reforçado pela tentativa violenta de o afastar, Erdogan está a conseguir o que queria: moldar uma Turquia sob o seu jugo. Apesar da constante exaltação da memória do Império Otomano, não parece que estejamos perante perante uma islamização do país ou o fim absoluto do kemalismo. Recorde-se, aliás, que o presidente falou para as câmaras de TV ainda no aeroporto de Istambul, com uma enorme imagem de Kemal Ataturk atrás de si, para lhe conferir toda a legitimidade como líder turco. O mais provável é que seja um projecto de autoritarismo pessoal, aproveitando a dupla herança dos otomanos e do regime criado por Ataturk (que governou sempre com punho de ferro) para reforçar a Turquia como potência regional comandada por ele, um pouco à imagem do que se passa na Rússia de Putin, com aquele híbrido de URSS czarista abençoada pelo metropolita ortodoxo de Moscovo. E a aproximação a esta última, bem como a Israel, enterrando questões recentes, parece apontar nesse sentido (e provocar calafrios à NATO).
 
 
 
Mais inquietante ainda é a vontade de mudar algumas situações que se pensava estarem definitivamente para trás, como a intenção de reintroduzir a pena de morte, e pior, aplica-la retroactivamente. Erdogan clama que se for essa a vontade do povo, então deve ser respeitada. Mas caso aconteça, para além de afastar definitivamente a Turquia da UE, apenas revela que poderá considera-se uma democracia, no sentido bruto do termo, mas nunca um regime liberal. Além de apontar uma vontade popular como fonte única de direito (desde que convirja com os seus propósitos), a aplicação de leis penais de forma retroactiva (particularmente a pena capital), coisa absolutamente interdita em democracias liberais, tornaria a Turquia numa tirania com forma democrática, baseada na vontade popular, que entregaria o poder o chefe supremo, de poderes ilimitados, acima de qualquer norma ou princípio, com os outros órgãos de soberania a cumprir um papel meramente decorativo. Mais do que os perigo imediatos que por ali grassam (tensões militares, terrorismo, etc), essa é que devia ser a principal causa de temor.

quarta-feira, julho 20, 2016

A guerra que começou há 80 anos


Há 80 anos, a 17 de Julho de 1936, começava o levantamento de Franco e de outros generais para derrubar a república, no seguimento de vários incidentes que culminaram com o assassínio de Calvo Sotelo, líder da direita parlamentar. Como se sabe, o levantamento teve eco nalguns pontos do país, mas falhou noutros, desde logo em Madrid e Barcelona, dando origem à terrível guerra civil que durante três anos devastou o país vizinho. Enfrentaram-se dois blocos políticos antagónicos divergentes mesmo entre si, os republicanos ou lealistas (que incluíam republicanos maçons, liberais, socialistas, comunistas, trosquistas, anarquistas, autonomistas bascos e catalães, entre outros). apoiados pela URSS e pelo México, e os nacionalistas (sobretudo monárquicos, conservadores, falangistas-fascistas, carlistas), apoiados pela Alemanha, Itália e oficiosamente, por Portugal. Com superior máquina de guerra e forças mais preparadas, e aproveitando-se das encarniçadas lutas internas no campo adversário, foram estes últimos os vencedores, ganhando terreno ao campo republicano até à queda de Barcelona, Valência e Madrid, em 1939. Nesses três anos terríveis houve atrocidades das duas partes, com quase mais mortos que prisioneiros. Meses depois do fim, começava a 2ª guerra Mundial.
       Manuel Azaña e Francisco Franco, os dois grandes representantes de cada lado, ainda em tempos da república
 
Os 80 anos do início da Guerra caem precisamente numa altura em que Espanha está sem governo efectivo depois das inconclusivas eleições de 26 de Junho, em que o risco de secessão da Catalunha é real, em que a classe política está desprestigiada e surgem novos actores partidários, quiçá mais radicais, e em que Espanha está ameaçada pela Comissão Europeia de novas sanções. Aparentemente, o único problema afastado é a questão de regime. E nalguns casos, certos fantasmas dos anos trinta parecem reaparecer, sobretudo quando há radicais ou irresponsáveis que os trazem à luz do dia.
 Claro que hoje em dia a sociedade espanhola não está tão dividida como em 1936, salvo nos nacionalismos catalão e basco (o galego é mais uma teimosia de sectores minoritários), já que pode haver combinações possíveis, impensáveis há oitenta anos (por exemplo, monárquico e autonomista). À esquerda, o PCE e sobretudo o PSOE são muito diferentes do que eram na altura, as formações republicanas azañistas são irrelevantes, os anarquistas também definharam (a sede da CNT/FAI em Barcelona é quase imperceptível, como tive ocasião de verificar), o POUM é uma memória; à direita, a Falange não é mais que meia dúzia de saudosistas (e todos os partidos neofranquistas foram um fracasso), os carlistas, ainda mais minoritários, dividiram-se numa pequena facção de esquerda e noutra de direita, e monárquicos há-os em toda a parte; curiosamente, talvez seja o PP o mais parecido com um dos grandes partidos da época, a CEDA, de Gil Robles (cujo filho, o espanhol que melhor português vi falar, pertence ao PP e chegou a presidente do Parlamento Europeu), embora num contexto muito menos tenso. Aparentemente, o Podemos é a formação com mais saudades da república, como se provou com alguns militantes destacados fazendo manifestações anticlericais, mesmo sabendo ao que isso levou. E a sua implantação crescente não é um bom sinal.
Mas a lição da história parece ter caído bem nos espanhóis. Aparentemente, e a julgar pelos resultados eleitorais, os povos vizinhos não têm grande vontade de reviver os anos trinta, nem sequer nos cenários de secessão.

É irónico que nos últimos dias vários periódicos do nosso país tenham publicado uma qualquer sondagem em que mais de 70% dos portugueses veriam com bons olhos uma união ibérica. Tenho dúvidas nos métodos do inquérito e se as pessoas perceberam bem o que lhe perguntaram. Mas aos  iberistas que ficariam muito agradados numa fusão por questões fiscais e outras razões menores, devia-se-lhes perguntar se também gostavam de ser "ibéricos" ao tempo da Guerra de Espanha, como tudo o que isso implicou. Tenho ideia que o seu fervor se dissiparia num instante.

segunda-feira, julho 18, 2016

O fim do triste Fado


Não exagero se disser que a vitória da Selecção no Stade de France, a 10 de Julho de 2016, e a conquista da Taça da Europa representam, se não o fim, pelo menos um enorme rombo no triste fado lusitano, no desgraçadinho, no "nunca conseguimos", na saudade do futuro que nunca chega. E há mais quem corrobore, como Eduardo Lourenço ou André Lamas Leite. Tal vitória, perante a nossa bête noire futebolística no seu próprio covil, com o Mundo inteiro a assistir, daquela forma heróica, em que o capitão e máxima referência é excluído maldosamente do jogo sob a complacência do juíz, e é o jogador mais subvalorizado de todos que aplica o pontapé de glória, é digna de uma epopeia de Camões ou de um épico à Cecil B. DeMille.

O futebol, como mobilizador de multidões, tanto nos recintos como nos ecrãs, é hoje talvez o maior expoente da globalização. Veja-se a título de exemplo os milhões que são pagos pela sua radiofusão, os custos da publicidade, a venda de camisolas por toda a parte, etc. Mesmo em países tradicionalmente pouco ligados à bola, o interesse é crescente - o investimento em jogadores nos Estados Unidos e na China, além do enorme aumento do número de espectadores e telespectadores dos jogos, é brutal. Por isso, e por muitas outras razões, não se pode reduzi-lo a um mero "jogo entre 22 pessoas para enfiar uma bola numa rede". Talvez não siga a máxima de Bill Shankly, mas a verdade é que nunca o futebol esteve tão mediatizado e globalizado como agora. Que eu me recorde, o único português que pôs espanhóis e ingleses em silêncio, antes de ser aplaudido, chamava-se Eusébio da Silva Ferreira.
 
Dada a importância do futebol na visibilidade de uma comunidade, os triunfos transcendem a simples vitória desportiva. E Portugal mostrou-se muito ao mundo nos últimos vinte anos, depois do surgimento na década de sessenta, de alguns brilharetes nos 80 e da "geração de ouro". Em todo o mundo se vê gente com a camisola da Selecção, particularmente desde que Cristiano Ronaldo se tornou um supercraque e um ídolo à escala mundial. Lembremo-nos por exemplo daquele miúdo indonésio encontrado à deriva depois do tsunami de 2004, o Martunis, mais notícia pela camisola que envergava do que pelo salvamento em si. Daí a importância extraordinária desta conquista: uma equipa diminuída, privada do líder natural, desfeiteou outra dada como vencedora e arrebatou o troféu mais cobiçado que estava entalado na garganta desde 2004.
 
Há também o aspecto simbólico da coisa, remetendo para o futebol puro e simples, a começar pela primeira vitória oficial de sempre sobre a França, uma desforra particularmente saborosa por ser no seu "circo máximo", numa final, e com representantes das anteriores derrotas em cima do palco - Humberto Coelho pela selecção de 1984, João Vieira Pinto pela de 2000, e os próprios Ronaldo e Ricardo Carvalho (também únicos sobreviventes da equipa de 2004) pela de 2006. Sempre nas meias finais. Mas na final, o vencedor seria outro. E logo no país onde reside a maior comunidade portuguesa fora de Portugal, e que se mostrou avidamente. No dia a seguir ao triunfo, teriam um motivo a mais para andar de cabeça levantada. Repegando numa piada que já deixara no outro dia, este ano, o verdadeiro dia de Portugal e das comunidades foi não a 10 de Junho mas a 10 de Julho.
 
Como também se disse, no dia seguinte ao sonho tornado realidade, e apesar da festa imensa e da recepção triunfal à Selecção, a dívida pública não baixou, os serviços públicos não melhoraram, o desemprego não desapareceu, a classe política não se regenerou e até se soube que a Comissão Europeia prosseguido com processo de sanções a Portugal por falta de medidas contra o défice. Mas o que fica mesmo é o exemplo de organização, trabalho, fé, união e espírito de sacrifício que os jogadores e técnicos demonstraram, com um pouco de sorte pelo meio - mas a sorte aparece nestas ocasiões. Aquilo que nunca tinham conseguido, e que se dizia, particularmente após o Euro-2004, que nunca iriam conseguir, concretizou-se numa extraordinária vitória quando todas as circunstâncias indicavam o contrário. O impossível era afinal possível, e o triste fado não gemeria para sempre. Socorrendo-me da mitologia lusitana, pode-se dizer que o mito (da suplantação) do Adamastor sobrepôs-se ao do sebastianismo falsamente esperançoso e para sempre à espera de nada.
 
Para acabar, uma palavra sobre Fernando Santos. Em 2004, quando Portugal perdeu em casa, dizia-se que só com Mourinho a equipa nacional conseguiria alguma coisa; Fernando Santos fora despedido do Sporting, tivera um fim de época para esquecer e era dado como um loser, embora competente. A passagem pela Grécia deu-lhe como que uma nova raça. Apanhou a Selecção em cacos, depois de uma derrota caseira com a Albânia (sim, a aventura de Portugal neste Europeu começou da pior forma possível), e levou-a tranquilamente à qualificação. Geriu tudo com objectividade, humildade (apesar da declaração, no fim verdadeira, de que só voltaria no dia 11) e Fé, que aliás demonstrou publicamente e sem quaisquer pruridos nas declarações após a vitória. Deixou quase todos os louros para os jogadores. Provou que não é preciso ser muito mediático nem exuberante para se atingir o topo quando este mais parece inalcançável. Curiosamente, este parece ser o anos dos treinadores dados como losers: Rui Vitória, Claudio Ranieri, Fernando Santos, todos eles triunfaram quando nada o fazia prever. Mostraram trabalho, fé e resistência à descrença que os rodeava. Ganharam. E deram um valiosíssimo exemplo a todos.
 
Já lhes disse que o triste fado de Portugal acabou no dia 10 de Julho de 2016?




O mais comovente vídeo da final; golo de Éder, música "Acção" de Carlos Paredes, montagem de Cristiano Saturnino.

segunda-feira, julho 11, 2016

Campeões da Europa


 
Sim, a hora chegou. Eram dez e meia da noite, mais uns minutos, hora portuguesa, quando o apito final do árbitro nos deu a Taça que tanto e há tanto tempo queríamos. Ainda tenho as emoções de ontem cá dentro, não consigo deixar de ver imagens dos momentos mais importantes e sinto bem o cansaço da adrenalina liberta e das comemorações nas ruas do Porto, depois de ver o jogo com amigos, em casa de quem vi todos os "mata-mata". Como em todo o país, as ruas encheram-se de carros a apitar, de colunas de pessoas felizes e descontraídas, a baixa da cidade parecia reviver um fim de semana animado e colorido, e os Aliados estavam cobertos por uma multidão festiva e ordeira. O entusiasmo crescia quando nos ecrãs aparecia algum jogador como Éder, o herói da noite, cujo nome era ouvido e aclamado em toda a parte, e transformava-se em euforia quando o hino nacional era tocado, ou então uma música icónica da ocasião, como A Minha Casinha, versão Xutos.
 
É o culminar de um mês que começou com quase indiferença e falta de entusiasmo, que passou a ser de desespero, de aceitação, e por fim, de confiança numa vitória improvável. Nunca como agora vi as pessoas tão confiantes numa vitória da Selecção. Até eu, incorrigível pessimista, tinha uma enorme crença de que ia sair algo de memorável. A expectativa desceu, com a lesão indecente de Cristiano Ronaldo, o homem que mais queria pisar aquele relvado. Mas a sorte protege os audazes, e a glória os que têm decisões temerárias. e não podia haver escolha mais temerária do que lançar Éder; quando entrou em campo, dizia-se a brincar que o máximo seria ganhar com um golo de Éder. E aconteceu mesmo. Teve uma oportunidade, falhou, tentou de novo, e enfrentando sozinho a defesa francesa e a maioria dos espectadores do Stade de France, com um pontapé desengonçado, chutou um torpedo para a glória. O jogador cuja convocatória todos criticaram e zombaram tornou-se o herói de um país. Não mais o nome deste originário de Bissau que cresceu num lar nos arredores de Coimbra será esquecido. Nem o dos outros 22 companheiros, e muito menos de Fernando Santos. A Taça é deles, e consequentemente, nossa. Esta glória, esta alegria, ninguém nos tira.
 
 

domingo, julho 10, 2016

Que se dissipe o nevoeiro


É para dias como os de hoje que os poetas mais são necessários.


Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra...
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo - fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer,
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É A HORA!


sábado, julho 09, 2016

O terramoto partidário do Reino Unido



Se em França uns desaparecem fisicamente, no Reino Unido outros desaparecem politicamente. Os resultados do referendo não só trouxeram um terramoto para a Europa (e possivelmente para a própria União britânica, com a possível secessão da Escócia), mas também sacudiram totalmente a classe partidária dirigente local.

David Cameron pediu de imediato a demissão do governo e do partido, como se sabe. Boris Johnson, o seu grande adversário e um dos grandes vencedores da votação, que todos imaginavam já em Downing Street daqui a meses, sentiu-se com a chão a fugir depois do seu aliado Michael Gove, responsável governamental pela justiça, lhe ter puxado o tapete e anunciado a sua própria candidatura, e deixou tudo boquiaberto quando em conferência de imprensa na semana passada, quando todos achavam que ia anunciar a previsível corrida à liderança torie, declarou que o homem que governaria o Reino Unido não seria ele. Fica-se sem saber se Boris teria aquela ambição ou se é demasiado fraco para avançar à menor dificuldade. Em todo o caso, a sua carreira política ficou seriamente comprometida, a sua popularidade caiu a pique e provavelmente caiu um mito na política britânica. Em todo o caso, a facada nas costas de pouco serviu a Gove, já afastado da corrida à liderança por duas senhoras. Do mal o menos: com a sua face meio ET meio criança de colo, não seria certamente Gove a restaurar o prestígio britânico..

Entretanto, entre os Trabalhistas, a coisa está também a ferro e fogo. Já se sabia que Corbyn não reunia grande simpatia por parte da maioria dos deputados Labour, mas as suas posições europeias algo ambíguas e as acusações de que terá entrado na campanha a favor do "remain" tarde e com pouca convicção (fazendo com que muitos eleitores trabalhistas optassem pela saída) causaram furor no partido, tendo perdido um voto de confiança dos membros da câmara dos Comuns. contam-se espingardas, já há candidaturas à liderança a ser lançadas, como a de Angela Eagle (que bem parece uma espécie de Boris Johnson em versão feminina).

E no partido que mais ganhou o  referendo, o UKIP, Nigel Farage está de saída, considerando a sua missão como cumprida. Desta vez parece ser a sério, não uma falsa partida como em 2015. Não se sabe o que acontecerá ao partido, agora que a sua razão de existir se eclipsou. Mas sabe-se o que acontecerá a Farage nos próximos tempos: mantém o seu lugar no Parlamento Europeu, numa instituição com a qual quer acabar, mas que lhe paga o seu avultado salário (ou "o gasto mais inútil da União Europeia", como disse Guy Verhofstadt). O representante do "little people" continua a mostrar todas as suas virtudes e o seu grande sentido de estadista. é duvidoso que lhe tenha passado pela cabeça sair do PE, mostrando uma réstia de dignidade.

Parece que só entre os liberais-democratas, os verdes e os nacionalistas é que as lideranças estão postas em sossego, a salvo dos terramotos que varrem a classe política dominante. Tudo isto numa semana em que o relatório Chilcot arruinou ainda mais a imagem de um dos primeiros-ministros mais duradouros da história do país, Tony Blair.

quarta-feira, julho 06, 2016

Memórias de Gales





A imagem que eu tenho do País de Gales: minas de carvão, quase todas desactivadas, convertidas, como esta (The Big Pit), em museu, no meio de uma paisagem monótona, separada de Inglaterra por um enorme estuário. E placas na estrada bilingues, com palavras estranhas como Caerdydd. Tempos em que a selecção galesa aparecia nas qualificações como figura de corpo presente, embora já houvesse Giggs e ainda houvesse Rush. A extracção mineira e a pastorícia já lá vão, mas nos campos de França, os galeses converteram-se num autêntico perigo. Respect, ou em galês, se o tradutor do Google não induzir em erro, barch.

PS: e depois do barch, que nos colocou na final mais desejada, resta esperar a "manque de respect" que se tem verificado por parte dos franceses - e não só. A primeira regra para se ganhar é respeitar e não subestimar o adversário. É bom que se esqueçam disso. Já agora, também seria engraçado colocar uma tarja no dia da final recordando que agora, a aldeia do Asterix se chama Portugal.

segunda-feira, julho 04, 2016

Big-Bang político, o legado de Michel Rocard


Os obituários deste fim de semana estiveram completamente sobrecarregados: Camilo de Oliveira, Elie Wisel, Michael Cimino, todos eles foram objecto de artigos e de atenção mediática. Incrivelmente, parece ter passado despercebido o desaparecimento de Michel Rocard, um dos políticos franceses e europeus mais importantes dos anos oitenta-noventa, de que só soube pela capa do I.

Rocard, que exerceu o cargo de primeiro-ministro de França no fim dos anos oitenta, era um dos poucos no PSF a declarar-se social-democrata, isso quando a palavra era tabu num partido que anos antes tinha governado em coligação com o PCF de Marchais. Aliás, até há bem pouco tempo, o PSF continuou agarrado a fórmulas esquerdistas e jacobinas antigas e só recentemente começou a descolar. Manuel Valls, que tem protagonizado essa mudança, é um seguidor confesso do antigo estadista e das suas ideias. No início dos anos 90, Rocard, à frente do partido, propôs uma mudança radical que teve algum eco, com o seu célebre "Big-Bang" político. A ideia era fazer um amplo movimento reformista que incluísse não apenas socialistas mas também ecologistas, comunistas renovadores, centristas, católicos progressistas ou defensores dos direitos humanos tout court. Estavam reunidas as componentes da Deuxième Gauche de que era figura de proa, e que se opunha à esquerda marxista e jacobina.

O PS francês sofreu duros reveses eleitorais durante a sua liderança, e as ideias do Big-Bang foram postas de lado. Só recentemente Valls tentou levá-las avante, e apenas em parte. O Big-Bang permaneceu como uma das ideias políticas dos anos noventa que não chegou a ser levada avante, e que caso o fosse, teria talvez regenerado a esquerda reformista francesa e dado capacidade para se bater com a direita unida da ex-UMP, e quem sabe, travado o passo à Frente Nacional. Agora, o PSF está pelas ruas da amargura, os Republicanos (ex-UMP) colam os cacos e reorganizam-se, e a FN permanece na crista da onda. Rocard era um homem de visão. Há tempos, previu o Brexit e as razões para a saída do Reino Unido (coisa que desejava). Não foram pois os resultados do referendo que provocaram a sua morte. Seria bom por isso que se olhasse para as suas ideias e se tentasse aproveitar um pouco. Porque o centro político e as forças democráticas só ganharão nova força renovando-se, olhando para os problemas e enfrentando-os com coragem e realismo. Michel Rocard sabia disso. Os que fizeram ouvidos de mercador terão agora forçosamente de interpretar bem o seu legado político.


domingo, julho 03, 2016

Por uma missão redentora


A verdade é que, descontando os artigos chauvinistas e ressabiados de alguns pasquins por essa Europa fora (particularmente no país anfitrião), Portugal teve os quartos de final menos meritórios de quantos passaram à fase seguinte. O nosso próximo adversário, Gales, ultrapassou a favorita Bélgica de forma magistral; a Alemanha expurgou a bête noire Itália, a quem nunca tinha ganho numa fase final, também depois de um 1-1 e de grandes penalidades (aliá pessimamente marcadas), mas a Itália é a Itália, superior a qualquer Polónia, por mais que esta tenha um Lewandowski melhor que todos os atacantes transalpinos da acutalidade juntos; e a França despachou a outsider Islândia com uma goleada descansada.

Mas ninguém se fie nas debilidades, até porque na quarta Ramsey estará fora, para alívio dos "famosos" e Raphael Guerreiro estará de volta. E se Portugal for à final, encontrará ou o colosso alemão, com quem nos últimos encontros não se saiu airosamente, e que motivará evidentes metáforas com a situação na UE, ou enfrentará a própria França, ali, no Stade de France. A selecção da casa, que nos momentos decisivos sempre nos venceu. Pode ser uma humilhação, uma derrota, uma secundarização melancólica, a desforra cruel de todos os que têm dito horrores desta turma de Fernando Santos, para tristeza ainda maior, na semana seguinte, de todos quantos trabalham em França. Ou uma vitória épica, mesmo que seja no fim de um prolongamento ou de novo nos penaltys, a redenção total de uma selecção, e porque não, de um país, ali, em frente à maior arena francesa, com Platini e Zidane a engolir em seco, o Arco de Triunfo a desbotar as falsas vitórias, os chauvinistas em urros e as gerações que ali chegaram desde os anos sessenta e comeram o pão que o diabo amassou, enfim redimidos com a sensação de triunfo e de orgulho na alma pelo país que nunca esqueceram.

Mas antes é preciso derrotar o País de Gales, Gareth Bale, o sentimento gaélico, e tudo o mais. Não vai ser nada simples. A confiança dos galeses está nos píncaros e tudo farão para levar o nome de Cymru a Saint Denis. Por isso, a missão da Selecção é por demais complicada. Têm de o conseguir. No pain, no gain.