segunda-feira, maio 27, 2013

Do apocalipse civilizacional à morte desesperada


O inquietante caso do ensaísta e historiador francês ligado à extrema-direita que se suicidou esta semana em plena Catedral de Notre-Dame tem muito mais que se lhe diga do que uma mera acção espectacular de protesto desesperado contra a aprovação do casamento/adopção gay em França.
Olhando para as suas ideias e para o seu currículo, parece ser o típico militante da extrema-direita identitária e nacionalista, anti-semita e anti-emigração, com poucas ligações ao cristianismo e à mensagem cristã mas que admira a estrutura e autoridade da Igreja Católica, embora neste caso a acuse de "patrocinar a imigração afro-magrebina". Ou seja, um representante contemporâneo da Action Française, que dominou a intelectualidade e os meios universitários com as suas campanhas virulentas nos anos vinte e trinta.
 
 
A escolha de Notre Dame parece ajudar a essa ideia: o templo maior de França, símbolo, juntamente com Chartres e Reims, da cristandade e ao mesmo tempo do poder real centralizado, como guardião dos valores da "velha" França, bastião contra a invasão estrangeira e a degradação dos costumes. O símbolo de uma ideia de ordem e de autoridade, mesmo que depurada da mensagem do Cristianismo, inspiração que já vem desde os tempos de De Maistre e continuou com Maurras e outros ideólogos legitimistas.

O editor de Venner, comentando a sua morte, aludiu ao suicídio de Mishima. Como se sabe, o escritor japonês, também ele defensor dos valores tradicionais japoneses pré-Guerra (e que curiosamente era homossexual, tendo elevado a figura de S. Sebastião martirizado a ícone homoerótico), suicidou-se cometendo sepukku ao falhar um levantamento militar destinado a devolver os poderes de semi-divindade ao Imperador. Para Mishima, o passado glorioso e tradicional do Japão não voltaria, pelo que preferia abandonar o mundo através do terrível e "glorioso" ritual de morte próprio dos samurais. As declarações finais de Venner, prevendo a "substituição" da população francesa, e um novo sistema de valores no qual não se reconhecia de todo, em boa parte contraditório, e o seu suicídio carregado de simbolismo, são em tudo parecidas com a do escritor japonês. Mais do que "um acto tresloucado de ódio", como vi escrito, tratou-se de um fim desesperado, de alguém que já não se reconhecia num mundo emergente (que ninguém sabe dizer qual será), e cujo fim violento e público é consequente com as ideias mais radicais que defendia.
 
 
 
Outro caso similar, provocado também pela ideia angustiante do fim de um certo modelo civilizacional, neste caso muito diferente dos anteriores, é o de Stefan Zweig. O escritor, ensaísta e biógrafo austríaco, quase esquecido durante décadas e hoje de novo editado, suicidou-se no Brasil, em plena Segunda Guerra, assistindo ao segundo suicídio da Europa, crendo que o seu mundo, construído na faiscante Viena dos Habsburgos pré-Grande Guerra, tinha sido esmagado pelo totalitarismo. As suas ideias eram em boa parte opostas às de Mishima e Venner, mas a assunção de que o seu modelo de civilização tinha acabado, que os valores que defendia estavam a ser espezinhados e extintos, é exactamente a mesma. A sensação de fim de uma ideia de mundo, aliada a acontecimentos preocupantes, pode em muitos casos levar ao desespero e a colocar um fim à vida. Sejam quais forem os valores que se defende. e o suicídio tumultuoso de Venner deve ser entendido mais como um último acto de revolta contra um estado de coisas, ainda que tresloucado, do que mera acção radical de propaganda.
A prova infalível de que o francês não era realmente cristão é que atentou contra a própria vida, dádiva de Deus, diante do altar que O celebra.

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