terça-feira, janeiro 31, 2012

Moretti bem que merecia uma estatueta


Já saiu a lista dos nomeados aos Óscares. Bem sei que só por si não é pressuposto de bom cinema, mas de um razoável espectáculo (este ano deve ser bom, com o meu conhecido Billy Crystal), e este ano inclui Scorcese, Spielberg, Merryl Streep, Clooney, Woody Allen, Malick e demais passadeira vermelha - parece que só mesmo Clinto Eastwood ficou de fora, sem que o seu biopic de J. Edgar Hoover convencesse os críticos (a propósito, tenho de ir ver esse).

Há ainda uma curiosidade muda franco-americana, O Artista, mas em termos de filmes estrangeiros, dos quais ficou arredado José e Pilar, não há grande realce, excepto o iraniano Uma Separação, que de que me disseram o melhor possível. Por isso mesmo, mais estranha se torna a ausência de um dos melhores filmes que por aí andaram no ano passado, Habemus Papam, de Nanni Moretti.
O filme é ao mesmo tempo ousado e cómico. Ousado porque aborda a fraqueza do Sumo Pontífice, que deveria estar abençoado pelo Espírito Santo, e se atreve a perscrutar o Conclave e o mistério que o envolve. Cómico por todas as situações porque passam as personagens, em especial os cardeais, que se revelam tão humanos e com tantas dúvidas e fraquezas no momento da escolha, como na notável cena em que os seus pensamentos temerosos se tornam ensurdecedores, ou até a Guarda Suíça (pelo meio, e a acreditar que o Papa anterior era João Paulo II, que morreu em Abril, pode-se ver o dia do juramento desse corpo de guarda pontifício, todos os anos a 6 de Maio, dia de São Dâmaso e do saque de Roma).


A história do Papa deprimido, que não tem coragem de se revelar ao público na janela de S. Pedro, e que passa por um longo processo de recuperação, incluindo a psicanálise e mesmo a fuga (que recorda um pouco As Sandálias do Pescador), parece uma adaptação de Os Sopranos transposta para o Vaticano. É difícil imaginar o Sumo Pontífice com depressões, pese embora a sua normal idade avançada e as suas múltiplas preocupações. Mas a hipótese de uma recusa após a eleição é plausível. Os Conclaves duram dias, desespera-se pela fumo branco, que até já deu origem a expressões populares. Terá já acontecido, na história? Possivelmente. Mas que eu me lembre, nunca se tinha colocado essa questão, ao menos no cinema.
Bento XVI chegou a dizer que certamente alguns Papas não tinham sido abençoados pelo Espírito Santo, que guia os cardeais na sua eleição. Neste caso, parece que assim aconteceu. O recém eleito cardeal Melville não tem forças para assumir a sua missão e provoca uma crise velada, agravada com a sua fuga, durante a qual deambula por Roma. Entretanto, sucedem-se cenas de antologia, como as mundanas rivalidadezinhas entre os cardeais, a passagem da música todo cambia, de Mercedes Sosa, recebida com deleite, e a incapacidade total do psiquiatra contratado para tratar o Papa, interpretado pelo próprio Moretti, para levar a bom termo o seu dever. Para colmatar o insucesso, e como não pode sair do Vaticano até que o Conclave termine (o que implica que o Papa se dê a conhecer publicamente), o psiquiatra entretém os cardeais, aconselhando-os a que remédios tomar, e formando com os prelados equipas de voley divididas geograficamente, o que acaba por provocar inusitada euforia e revelar que têm mais forma do que aquilo que aparentam.

Mas independentemente dos fantásticos momentos de humor do filme, o reconhecimento de incapacidade assumida pelo próprio Pontífice parece tomar formas de tragédia silenciosa. Se a ideia de um Papa recusar a sua missão apenas entre o segredo da Capela Sistina, permitindo nova eleição, já de si causa algum desconforto, que dizer da renúncia pública na varanda de S. Pedro? Será o único responsável aquele que declina a missão de pastor perante Deus e os homens, com um emudecedor non sum dignus, ou os cardeais não foram mesmo guiados pelo Espírito Santo? Este é um filme que poderá parecer ligeiro, mas cujas interrogações, e sobretudo as cenas finais, inquietam qualquer católico, e porque não dizê-lo, qualquer mortal. E não será isso, precisamente, um pressuposto para considerarmos um grande filme?
Quem é que não se lembrou de o colocar na lista de Melhor filme estrangeiro deste ano? E com que suborno?

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