sábado, janeiro 16, 2010

Haiti: sobre a miséria, o apocalipse


Só na noite de quarta-feira é que soube da catástrofe haitiana. E só no dia seguinte é que pude ver as suas proporções. Mais do que uma catástrofe humanitária, viu-se o colapso de um estado, já de si pouco seguro e corroído pela sua instabilidade, violência e estranhas tradições.

Os sismos não raras vezes desencadeiam cataclismos imensos, como aqueles que assistimos normalmente na Ásia nos últimos anos (China, Paquistão, Irão, Malásia, etc), e deixam marcas profundas. Por aqui, o Sul do país também para sempre ficou marcado pela terramoto de 1755, do qual nos lembramos em momentos em que a terra se lembra de mexer um pouco, como aconteceu em Dezembro último, com uns abanõezinhos que puseram imensa gente a aderir a grupos no Facebook com nomes como "eu sobrevivi ao sismo de Dezembro", como se uma grande peripécia se tratasse.

Neste caso, à magnitude dos estragos junta-se a visibilidade de um país e suas estruturas de governação literalmente por terra. As ruínas do palácio presidencial e da catedral ilustram isso na perfeição. O que não sucederia aos frágeis bairros de lata ou às casas alcandoradas nas colinas de Port-au-Prince.


O Haiti é uma das terras mais estranhas e miseráveis do globo. Dividindo a ilha da Hispaniola, a segunda maior das Caraíbas, com a vizinha República Dominicana, este estado montanhoso, onde a população é negra ou mulata e fala francês e crioulo é o país mais pobre das Américas. Quando há uns anos, na faculdade, tive de fazer algumas pesquisas para a cadeira de Direito Internacional Público sobre as acções de peacekeeping em 1994, na altura da eleição de Jean-Bertrand Aristide, vi imagens da miséria profunda daquele povo: os bidonvilles com lixeiras à mistura, onde sobressai a enorme Citée du Soleil, onde por vezes se queimam pneus com homens presos lá dentro, as pessoas a tomar banho nos esgotos, as gaivotas penduradas no Porto, antes de servirem de refeição, etc.


A metade francófona da Hispaniola tem um história trágica e violenta. Era a colónia francesa de Saint-Domingue, preciosa e fértil, movida pela força dos escravos trazidos de África, mas estes revoltaram-se em 1803, chefiados pela intrépido Toussaint Louverture. O líder negro conseguiu grandes feitos, mas acabou por ser preso pelos franceses, e morreria numa fortaleza do Jura. Mas a revolta triunfou e o Haiti proclamou a independência. Seguiu-se um século de auto-proclamados imperadores, como Dessalines, tiranetes vários, uma prolongada intervenção norte-americana, até à chegada, em 1957, de François Duvalier, o célebre Papa-Doc. Este impôs um sinistro regime, brutalizando e aterrorizando a população com a sua milícia pessoal, os sinistros Tonton Macoutes, e com práticas vodu, que a população segue, a par do cristianismo. Depois da sua morte, sucedeu-lhe o estouvado filho, Baby-Doc, até que uma revolução em 1986 o expulsou. Depois de anos de instabilidade, Aristide foi eleito presidente, prometendo uma nova era de prosperidade e justiça social, em que os paupérrimos negros teriam as mesmas oportunidades que a elite mulata, que vivia nos seus bairros desafogados nas colinas. Teve de fugir por causa de um golpe de estado, mas com a ajuda dos Estados Unidos voltou ao Haiti em 1994. Mas o seu governo nada resolveu, caracterizou-se por opressão e corrupção, e também Aristide acabou por deixar o cargo no seguimento de revoltas. René Préval seguiu-se na presidência, até agora. Com um pouco mais de estabilidade, mas na miséria de sempre.



É este país de mulatos remediados e negros miseráveis, montanhoso, pobre, com uma larga história de violência, imerso no vodu e no culto a figuras como o Baron Samedi, que está agora a atravessar o caos. Mais de cem mil mortos, mais de um milhão de desalojados (o epicentro deu-se na capital, Port-au-Prince), corpos amontoados, todas as estruturas estatais destruídas, falta de hospitais para os feridos, doenças, fome, e provavelmente, tumultos e pilhagens. O desespero, em suma. E neste país, que apenas nominalmente o é, podemos ver o inferno dos que não tinham quase nada e que mesmo isso perderam. Escombros, lama e ajuda humanitária, é tudo o que resta num território, que de facto, já não é um estado. Ou talvez seja apenas o estado pós-apocalíptico.

Um comentário:

Pedro Meira disse...

Excelente Pimentão!tenho lido alguma coisa sobre o Haiti, mas o teu post foi o mais esclarecedor em termos de historia do Haiti.Um ab ,Parabéns, o teu Blog está cada vez melhor.Um ab