quarta-feira, outubro 21, 2009

O Maradona de Kusturica



A propósito da Argentina e do seu treinador, tenho aqui a oportunidade de postar uma coisa pensada há já algum tempo.
Entre Fevereiro e Março passou discretamente pelas salas de cinema o filme de Maradona, do realizador/músico sérvio Emir Kusturica. O género estaria oficialmente dentro do documentário, mas na prática trata-se de um filme de propaganda, um pouco ao estilo de Michael Moore. Kusturica, nacionalista sérvio, activista anti-independência do Kosovo e realizador de filmes memoráveis (particularmente nos anos noventa), tem-se dedicado mais nos últimos tempos à sua carreira com os No Smoking Orchestra, com a qual tem visitado Portugal regularmente. Não deixou contudo de desenvolver um projecto antigo, o de homenagear o ídolo dos argentinos e napolitanos, vencedor quase a solo do Mundial de futebol 1986 e tristemente caído nas malhas da cocaína, Diego Maradona. Para isso, deslocou-se várias vezes à Argentina, onde o esperava um ex-craque com o volume de um tonel, assistiu a ritos da igreja maradoniana, levou-o a Belgrado e não cessou de focar a sua "mensagem revolucionária". Um dos pontos altos do filme é aliás um comício de Hugo Chavez, com el pibe ao lado, em que o presidente venezuelano brindou os assistentes com as suas habituais pantominices.

Na sua actual forma rubicunda, Maradona revela, como se esperava, um ego do tamanho do mundo. Considera-se um a espécie de self made player com ajuda divina. Diz tudo o que pensa de forma desbragada, mesmo que leve a contradições estranhas. Mostra o bairro onde cresceu, em La Boca, Buenos Aires, a ida para a Europa, Barcelona, primeiro (e a épica cena de pancadaria num jogo com o Athletic Bilbao), e Nápoles, depois. Na Campânia cometeu as maiores proezas, só igualadas pela conquista do Mundial de 1986 e a famosa "Mão de Deus" contra Inglaterra, cena repetida vezes sem conta no filme.

A meio da fita vem a sua declaração de amor a Cuba e a Fidel Castro. Utilizando um jargão muito comum na América Latina, El Pibe afirma que "graças a Fidel é que não falamos inglês", mostrando o quão gosta dos Estados Unidos. É uma teoria um pouco rebuscada, porque dificilmente se imagina como é que uma ilha das Caraíbas conseguiu tal proeza - não me lembro de nenhum muro impedindo a presença de norte-americanos - e mesmo em tempos pré-1959 a população falava espanhol. Há recriminações à ditadura militar dos anos setenta e oitenta, pois claro, mas a seguir diz que recusou-se a cumprimentar o Príncipe de Gales porque este teria "as mãos manchadas de sangue". Suponho que se estaria a referir à Guerra das Malvinas. Quem efectivamente esteve lá foi o Príncipe André, não Carlos, e quanto à guerra, nunca chegou a ser efectivamente declarada (pela Rainha), antes se tratou de uma resposta do governo britânico face à invasão argentina. Além de incriminar o príncipe sabe-se lá porquê, acaba por tomar o partido da junta ditatorial argentina, responsável pelo início das hostilidades e pela humilhante derrota que acabaria por ditar a sua queda. No fundo, a mesma posição de Fidel Castro, que numa posição contra-natura prestou o seu apoio àquele regime. Diga-se também que enquanto durou a sangrenta ditadura argentina, el Pibe jogou sempre pela equipa nacional. Transparece logo um violento sentimento anti-anglo-saxónico, confirmado ao longo do filme com pequenas recriações animadas e satirizantes do "Golo do Século", marcado no mesmo jogo contra a Inglaterra em 1986, em que sucessivamente Maradona finta e bate Thatcher, Reagan, Blair, Bush e a Rainha Isabel II, ao som de God Save the Queen - a dos Sex Pistols. Todos ao molho, desbaratados pelo talento do pequeno argentino.


Duas conclusões se tiram da singular ideologia de Maradona: uma é o sentimento de "latinidade", muito bolivariano e guevarista, em que supostamente a América do Sul e Central são uma só nação, desunida por fronteiras, e que transcende mesmo as ideologias opostas. A outra é a do sentimento contra tudo o que seja anglo-saxónico, talvez até mais contra os EUA do que o Reino Unido.

Há ainda o Maradona "homem de família" com mulher e filhos, e as suas queixas do tempo em que estava agarrado à cocaína. Mas é no jogador e no revolucionário que o filme se demora. É uma personagem complexa e irreverente, mas a que parece faltar inteligência para as suas escolhas e os seus actos, para não falar no discurso. Baseia-se no instinto e no coração, nunca no cérebro. Confunde frequentemente as coisas e nota-se em alguns assuntos um desconhecimento espantoso do que fala, aliado a uma espécie de dogmatismo messiânico ("o das barbas [Deus]não me deixou afundar e puxou-me"). Parece encarnar o "realismo mágico", de tão sul-americano que é, e note-se que curiosamente teve o apogeu da sua carreira no ano da morte de Jorge Luis Borges. Bola, família, truculência, latinidade, anti-anglo-saxonismo, fervor místico, um percurso errático com imensos vícios: eis Diego Armando Maradona.
Kusturica, naturalmente, quis fazer este filme atraído pela figura irreverente do génio da bola que despertou paixões e ódios como poucos, cocktail explosivo de bola e truculência revolucionária que bem podia vir da sua Sérvia. Podia igualmente ser uma personagem dos seus filmes, com personalidade tão balcânica. Sendo real, ficou-se por um documentário. Mas para além da familiaridade que viu em Maradona há ainda o carácter político e panfletário da obra: um nacionalista sérvio como é o realizador não podia deixar de aproveitar uma figura conhecida mundialmente que disparasse tão ferozmente contra os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, os mesmos que bombardearam Belgrado há dez anos e que acabaram com a Jugoslávia, dando a machadada final com a independência de facto do Kosovo. Assim, além de conhecer tal personagem bigger than life, usa-o como pregoeiro das suas próprias causas. As gargalhadas maquiavélicas e algo juvenis que dá amiúde quando entrevista Maradona, ao longo do filme, revelam bem a alegria que sente perante os torpedos verbais contra os ódios de estimação.
O documentário acaba por divertir medianamente, sobretudo nos passeios por entre as ruas de Nápoles e Belgrado, com algumas imagens de arquivo preciosas e recordações de jogadas de futebol realmente geniais. Enfastia nos discursos políticos e nas sequência familiares, a apelar à lágrimazinha. Mas a cena em que se vê o burlesco e a loucura que envolve Maradona é o casamento pela Igreja Maradoniana: perante uma cópia das orações cristãs adaptadas ao seu vocabulário próprio, um casal jura perante a "bíblia maradoniana" e uma bola de futebol que Maradona é o melhor jogador de sempre. Depois, para firmar o matrimónio, têm de marcar um golo com a mão, imitando o do seu ídolo em 1986. A cara do noivo gritando golo vale quase só por si o bilhete do filme e resume bem a personagem tão irreverente como patética que o inspira.

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